Por: DANIELLI FRANCO QUESADA, advogada inscrita na OAB/SP sob nº 448.384, com atuação no Contencioso e Consultivo da área Cível Empresarial junto ao escritório Maryssael de Campos Advogados desde 2020.
O tema abordado é relevante e oportuno, uma vez que o Direito está envolvido como instrumento de preservação das relações de consumo e de mercado e é, também, o meio pelo qual se faz a regulamentação publicitária.
Pode-se dizer que a publicidade é importante e eficiente, pois transforma o mercado, incentiva a circulação de bens, promove o consumo contínuo e, consequentemente, torna o produto final menos oneroso, ao proporcionar a concretização da produção em série. Todavia, ainda que apresente vantagens, convence com agressividade a sociedade ao consumo, cria pretensões em vez de responder às reais necessidades dos consumidores.
Nesse sentido, a prática de endereçar a comunicação mercadológica às crianças tem se mostrado cada vez mais comum e contínua, pois elas são convencidas a persuadir seus pais ou responsáveis da necessidade de se ter o produto ou serviço anunciado, ou simplesmente, para satisfação de sua vontade.
As mensagens publicitárias misturam o produto a ser comercializado com o mundo da fantasia e da realidade da criança, utilizando uma linguagem simples com a presença de personagens mirins, envolto em um mundo de sonhos atrelados a desenhos animados, jogos, sites da internet, vídeos, televisão, “youtubers” mirins, celebridades famosas, revista em quadrinhos e filmes infantis. Contudo, a criança não consegue perceber que está sendo persuadida pelas mensagens publicitárias juntamente com a programação em que está inserida. Ela consegue gravar facilmente o que está vendo ou ouvindo no anúncio e, consequentemente, pedirá ao seu responsável que compre o produto, até mesmo aqueles ofertado nas prateleiras de lojas e supermercados.
Destaca-se que a publicidade direcionada ao público infantil nos meios digitais propaga a ideia de que os anúncios são apenas entretenimento, apresentam conteúdo educativo, deixando a criança refém desses apelos. Outras crianças possuem acesso às redes sociais, ficando mais vulneráveis às instigações publicitárias. Ademais, os pais ou responsáveis muitas vezes não possuem tempo de lhes dar atenção ou são desprovidos de conhecimento das novas tecnologias, ficando alheios ao mundo em que a criança está inserida.
Sendo assim, tornam-se evidentes as consequências maléficas dos maus hábitos de consumo estimulados pela publicidade infantil. Embute-se a ideia de consumir, descartar, mas logo em seguida, adquirir outro produto mais inovador, para que alcance a satisfação plena.
A publicidade dirigida ao público infantil possui alcances na formação da personalidade da criança, bem como nos seus valores éticos e morais. Entretanto, muitas vezes, prevalecem os interesses mercadológicos das empresas, que agem em desconformidade com a lei, gerando reflexos negativos ao convívio familiar. Portanto, o maior problema da publicidade é a forma como os anúncios estão sendo apresentados.
Deste modo, esclarece-se que há um microssistema jurídico que tutela a infância de forma integral em decorrência de disposições da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.
Assim, vigora, pela doutrina, o sistema misto de publicidade brasileira, pois há o controle interno ou corporativo levado a efeito pelas recomendações do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (CONAR), juntamente com o controle exercido pelo Estado, disposto segundo as normas positivadas no ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, considerando que criança mistura facilmente ficção com realidade, por isso não compreende os comerciais, muito menos seu caráter persuasivo, faz-se necessária uma proteção especial diante de sua hipossuficiência.
Ainda que haja previsão constitucional sobre o direito da publicidade e da comunicação mercadológica, especialmente no artigo 170 da Constituição Federal, afirma-se que não são direitos absolutos, principalmente quando se envolve a proteção e garantias da criança.
Por isso, a liberdade de expressão deve ser restringida pelo Estado em defesa dos direitos da criança em razão da sua inerente hipervulnerabilidade, já que essa seria sua função constitucional de acordo com o artigo 227, Constituição Federal.
O Conselho Federal de Psicologia do Brasil dispõe que a hipervulnerabilidade da criança se dá, pois: (i) a publicidade tem maior possibilidade de induzir ao erro as crianças até os 12 anos, quando não possuem todas as ferramentas necessárias para compreender o real; (ii) as crianças não têm a mesma capacidade de resistência mental e de compreensão da realidade que um adulto; e (iii) as crianças não estão em condições de enfrentar com igualdade de força a pressão exercida pela publicidade no que se refere à questão do consumo.
A criança, enquanto consumidora infantil e alvo da publicidade, representa uma significativa fonte de lucros para os grandes empresários, já que esses possuem consciência de sua hipervunerabilidade e se aproveitam de atores mirins e personagens famosos para garantir seus proveitos. Desse modo, há uma íntima relação entre mídia, consumo de produtos e a grande influência ao consumo a que o público infantil está submetido.
Portanto, observa-se que, no Brasil, há interesses antagônicos ao referir-se ao setor publicitário e em relação aos defensores da regulamentação da publicidade infantil.
É necessário salientar que, nos últimos anos, diversos setores da sociedade estão interessados em tutelar o desenvolvimento de uma infância saudável, livre de interferências e pressões mercadológicas abusivas, pois é inerente à criança sua hipervulnerabilidade e hipossuficiência.
Entende-se que a oferta de brinquedos, produtos e serviços vinculados a alimentos, vestimentas, por exemplo, trazem consequências maléficas à saúde, ao convívio social e familiar, pois as propagandas tendem a moldar e a persuadir as crianças ao mundo consumista.
Da concepção de um mundo moderno e globalizado, que apresenta inúmeras informações anunciadas constantemente pelos meios de comunicação em massa, faz-se necessário que o Direito observe a evolução das relações sociais e, com muito cuidado, procure protegê-la, para que a segurança jurídica não venha ser afetada, aliada à vinculação da relação de consumo, todavia, visando concretizar o respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Assim, como já dito na célebre frase atribuída a Mahatma Gandhi, que compreende o futuro como algo a ser vivido dependentemente daquilo que fazemos no presente, parece fazer alusão ao fato de que se faz oportuno ponderar sobre a forma que se cultiva o porvir.
Por fim observa-se então, a necessidade de impor limites à publicidade dirigida às crianças, pois são seres hipervulneráveis que estabelecerão o futuro da sociedade, seja através de uma nova regulamentação adicionada à maior e efetiva fiscalização estatal em busca de tutelar os direitos da criança.
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